domingo, 9 de maio de 2010

3º turno - "o dia D"

Eu sei que é tarde e que amanhã vou fazer manhã depois de agora ter saído de tarde, sei disso mas não queria ir deitar-me sem antes vir escrever o que aconteceu e senti hoje no serviço. Precisava de libertar para o computador tudo o que senti neste turno. Toda a miscelânea de sensações, de aprendizagem, de vida que trouxe para casa.
Vivi coisas más, digo mesmo que muito más mas, respirei alegrias e sorrisos, vi vida onde as pessoas apenas pensam haver morte, e vi o mundo parar no sorriso de algumas crianças.
Quero começar com o não diria menos bom (como gosto de dizer), mas sim, o mau do turno. Eu tinha a pergunta pendente na garganta durante estes dias e ela tinha que sair, enchi-me de coragem, virei-me para a enfermeira Paula e perguntei após a passagem de turno “então enfermeira…e o X?”. “Olha Mário, o X faleceu ainda na manhã, na 5ª feira, mas olha morreu descansado. Esperou para ver o irmão e partiu…”. Eu sabia, sentia que tinha a resposta mas precisava de ouvir, eu olhei para o quadro de doentes assim que cheguei e tive então a certeza. Custou-me muito ouvir, custou-me viver aqueles meros segundos que trouxeram uma resposta sabida mas necessária para mim. Eu sabia que ia contactar com situações destas, que teria de lidar com a morte de alguém que não teria nunca idade para ir mas que, por alguma razão, aconteceu. Mas sou realmente um ser humano e involuntariamente ligo-me sempre às pessoas, faz parte de mim. Sei que onde estou isso poderá fazer-me, como hoje, sofrer. Mas sou sincero, não quero mudar isso, sofrerei quando tiver de ser, espero que poucas vezes claro, mas a verdade é que acho que as crianças necessitam realmente de nós e ligar-me a elas tem, para mim toda a lógica, preciso disso para me dedicar de corpo e alma a elas, de me dar para poder ajudar e se para isso tiver de sofrer mais outras vezes…que seja. Acho que o balanço será positivo. O caso do X mais uma vez me comprovou que a nossa razão de viver são as pessoas que amamos e que nos dão vontade de viver e, até numa altura como a que temos de partir precisamos de nos despedir delas, com ele foi o irmão, alguém que ele precisava ver uma ultima vez para não ir sem se despedir. Eu posso relativizar as coisas ao dizê-lo mas sinto que estas situações não são ocasionais e acontecem porque o que nos liga e dá vontade de lutar e viver são muitas vezes quem amamos e isto, para mim, vêm dar-me razão .
Essa foi realmente a pior fase do dia. Não me esquecerei do X, jamais. De como chegou, como estava, o que dizia e como agia e fez-me como já disse no ultimo diário, relembrar situações do passado mas foi importante esta situação, aprendi, mais uma vez que ninguém é imune a nada e que mesmo crianças, jovens, podem passar por obstáculos de vida injustos e que nem sempre se vencem.
Mas a verdade é que neste turno retirei muito, mas muito mesmo de positivo, foi o turno em que realmente pude contactar verdadeiramente com as crianças, brincar com elas, falar com elas, resumindo, criar relações e ver como é que é que o serviço funciona “às claras”. E existiram entre todas, 2 crianças que me marcaram muito. Uma delas, felizmente até teve alta hoje e fiquei completamente enternecido com ela, foram precisos apenas uns momentos para criar uma excelente relação com ela e, a verdade é que passado um bocado, parecíamos já amigos há anos. Voltei com ela, a ser criança e era inevitável, aquele sorriso era contagiante, a felicidade de alguém como uma criança, que por ir para casa, para o seu lar, e podia ir comer “batatas às rodas e com riscas”. O que dizer a uma criança que se gostou tanto e que me diz “fica comigo!” ao meu colo e abraçada ao meu pescoço, antes de entrar no elevador e descer para onde é o seu lugar, a sua casa? Sei que apenas consegui pedir-lhe mais um beijinho e dar-lhe um em troca e apenas lhe dizer “Não posso, vou ter de ir trabalhar e tu tens de ir para a tua casa com a tua mãe!” e ela lá foi, com o seu belo sorriso. São estas situações que nos dão alegria, que me fazem sentir que estou realmente onde tinha de estar e espero que nunca me arrependa disso pois tem realmente valido a pena as horas de sono perdidas a estudar e o cansaço que inevitavelmente se acumula.
Foi o dia em que comecei a seguir mais de perto também a primeira criança a quem ficarei responsável por prestar cuidados de agora em diante. Juntamente com a enfermeira decidimos então por aquela que é outra criança que referia acima me ter marcado. Foi por ele que surgiu o titulo deste dia de estágio. Após muita brincadeira, muito riso e conversa surgiu o facto da letra “D” ser uma letra comum aos dois e ser já um dos elos de ligação entre nós, em que após falarmos acerca das letras do seu nome eu lhe ter falado que apesar de Mário ser o meu nome principal tinha como 2º nome um que também começava por D. E depois de lhe dizer que era Daniel ele disse-me “Ah então é a nossa letra” e isso ficou marcado na memória. Mais uma vez não sei como é possível, criar uma relação enfermeiro - criança de forma tão rápida e eficaz. A verdade é que aconteceu e muito aprendi com o meu novo amigo “D”, que é dos miúdos mais radiantes que conheci já no serviço, com uma boa disposição incrível, um sorriso realmente incomparável e com uma força tremenda.
É verdade que com estes miúdos se aprendem lições extraordinárias, se vivem histórias incomparáveis e sinceramente, estes três turnos foram realmente marcantes, inigualáveis. Acho que, a meu ver um estágio deste género era indispensável no curso. Não quero dizer que toda a gente deve-se vir para uma pediatria, percebo e agora ainda mais que exista quem não consiga passar por um serviço assim, não que eu seja melhor ou pior que alguém, até porque eu próprio ainda estou no inicio e a exigência é e será sempre grande tanto pelas situações, pela teoria, pela enfermeira e por mim também, que muito de mim exijo mas tem de ser assim, mas sim porque, como eu tenho e assumo, pontos fracos e não conseguiria passar por alguns serviços, percebo que nem toda a gente conseguisse passar por um serviço como este da pediatria oncológica.
Sinto-me ainda muito perdido, sem uma direcção específica, pois é muita coisa a acontecer, muito para assimilar e parece nunca haver tempo suficiente para tal. De qualquer forma, quero muito, muito mesmo aprender mais, quero crescer e continuar a ver e aprender com aquelas lições de vida dadas por gente de palmo e meio e outros maiores que eu até, mas que tanto têm para dar. É realmente o serviço ideal e que me faltava para colmatar o que me faltava neste curso até ao momento, como profissional e, sem dúvida, como pessoa.

1 comentário:

  1. Sabes porque?
    Porque as crianças sabem ver nos olhos das pessoas quem elas são, atravez dos gestos dos sorrisos. E sabem sempre retribuir tudo aquilo que fazemos po elas.

    GRANDE ABRAÇO

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